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domingo, 15 de dezembro de 2013

Um comboio Lisboa - Faro

A estação de comboios estava quase vazia. Chego sempre, mesmo sem o querer, com muita antecedência a todo o lado.
Não era como nos dias de verão, jovens da faculdade a visitar os pais ou a prepararem-se para ir a banhos.
Não. Nesta altura do ano, são os mais velhos que vieram a Lisboa, tratar de consultas médicas. Um deles oferece-me o seu lugar para me sentar. Declino, por pura educação, mas ele diz-me que o seu comboio em 10 minutos já parte. "Também o meu". "Ah então também vai para o Algarve"
E logo, as irmãs que se sentavam no banco ao nosso lado, se abeiram e preparam-se para a conversa. "Se vai para Tavira, faz transbordo em Faro." Acendem-se as discussões ferroviárias-temporais, na qual ele é o mestre de toda a verdade, pois já conhece estes caminhos faz 50 anos. Mas elas gostam de opinar. Ele desaparece. Umas das irmãs, apanha o balanço e trava conhecimento com a jovem que está impaciente à espera do comboio. Fico a saber que mora em Lisboa, que a irmã a veio visitar, mas que vai agora comigo (e que coincidência, também na carruagem 22!) até Loulé.
Sorrio.
Estou pensativa, cansada, sisuda. Pouco usual. Mas a dona Zé vai contente, ao meu lado. Corro, para ver se não cai, quando ela, ansiosa, percebe que o comboio parou mais adiante do que é usual. Senta-se apenas duas cadeiras atrás e por isso "já nos vemos!"
Fico contente por não irmos sentadas lado-a-lado.
Fecho os olhos e aguardo que o comboio avance. Mas um zumzum ao meu lado dá-me a entender que uma senhora, a quem poderia facilmente chamar de Irene, não percebe onde é o seu assento. Pois claro, é ao meu lado, à janela.
Agradece e, a esforço, passa por cima das minhas pernas.
Tudo vai bem. Oferece-me uma broa. Mais uma vez recuso, apenas por educação. 
Não me recordo como tudo começou, mas de repente estou prostrada a escutar o que me diz sobre a sua saúde, as dores de costas, a artrose nas mãos, a casa da Praça de Espanha que é tão barulhenta em comparação com Albufeira. As praias do Algarve. O marido sagitário. Como é que o Corte Inglês ainda é o único sítio onde se encontra roupa bonita. A filha que estudou economia. "Ah, também estudou? Então é Dra.?"
O pica abana-me o braço a pedir o bilhete e, após o mostrar, peço desculpa à dona Irene por ter adormecido um bocadinho. "Oh Dra., coitadinha, deve estar tão cansada." Levo isso como um incentivo para voltar a fechar os olhos. Mas ela acorda-me a mostrar o produto para alisar cabelos que comprou no Colombo "lá em baixo, que é muito mais barato". Lembrou-se, "porque a Dra. tem um cabelo tão bonito."
Nisto, aparece a dona Zé. Vai à casa de banho. Mas quando for ao bar já me chama. "Sim, Sra., eu irei consigo", disse sem pensar.
Tenho um livro de 800 páginas fechado ao meu colo. Tenho uma chamada de trabalho para atender. Tenho sono e tenho muito em que pensar.
Mas a dona Irene prossegue o rodopio de conversas, as quais não é de meu feitio silenciar. Escuto, respondo, pergunto...
A dona Zé aparece a reclamar a companhia para o bar. Vamos!
Só lhe ia fazer companhia, mas acabei agarrada a um copo de papel com um chá preto, que me mantivesse os olhos abertos, a aprender sobre toda a sua vida e família entre cá e lá. Em tom de lição, afirma-me: no estrangeiro é que elas aprenderam tudo. E hoje são muito felizes. Viúva, também a dona Zé está feliz. Não quer saber das más línguas, diz ela, mas no fundo são elas que atrapalham um pouco a sua vida emocional, agora já recomposta. É que a vida continua, não há idade que nos pare...
Finalmente, o Algarve aparece algures. E pouco a pouco as minhas amigas deixam o comboio, como se, realmente, sentissem pena que tudo tivesse acabado ali...

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